terça-feira, 28 de abril de 2015

As tardes longas

Outono percorre as ruas

Num ônibus da periferia

Entre casas baixas

De paredes sujas de graxa.

 

A tarde percorre as ruas

De olhos quase fechados

A rebater na luz

O último facho

Mourisco a desfalecer.

 

 

A casa antiga


Uma escuridão percorre aquelas

Paredes, não sei bem

Se de desgosto consentido

Se de tristeza que perdura

Numa sombra alquebrada

A debruçar solenemente

Ao final da tarde.

 

As mesas em desalinho

Isentos estão de ternura

Uma toalha branca bordada

Recolhida às pressas

Sem maior serventia.

 

As vozes calaram-se

Em festas que não há mais

Dos aniversários passados

Não restaram nem lembranças

Que se vão diluindo

Numa casa mais vazia.

 

Nem as roseiras ficaram

Arrancadas do lado

Num canteirinho que

Vicejam as ervas

Daninhas e o musgo

Resistentes ao tempo

Verdejante se vinga

Esparramando-se no abandono.

 

Casa que em momentos

Derradeiros um anjo de branco

Passou

Num mármore passou seu lenço

Fazendo girar a roda do tempo.

 

Ficarão nas paredes

Sob as tintas a saga dos heróis

Do passado

Que respingam agora

Respiram sossegados.

Caminhante solitário


Nada mais precisa

Um Arhat:

Os panos do corpo

Uma tigela nas mãos.

 

Caminha sua trilha

Sem se deter

Sem medo dos bosques

Escuros

A escuridão da alma

Em que esconde a vaidade

Os rancores também

Escondem-se os demônios

De formas variadas

Alguns são azuis

Outros amarelos

O maior de todos

Tem a nossa cara

E todos os nossos vícios.

 

 

 

Escorre-se agora


Outono passageiro chega

Multiplicando nas esquinas

Olhares tristonhos que não tenho

Que vagueiam pelo chão

De um mosaico sinistro

Um profundo vazio.

 

Das janelas altas

Da velha São João

Uma mulher de vermelho

Assiste o mundo passar

Os carros passam

Ou serão tartarugas com

Carapaças de aço?

 

A manhã passageira

Também passa

As águas perdidas do esgoto

Haverão de passar também

Enquanto isso a vida inteira

Vai se esvaindo agora

Num ralo fininho

A derramar por inteiro

No mar imenso

Onde tudo se origina

Salmoura da existência.

 

As tardes longas

Outono percorre as ruas

Num ônibus da periferia

Entre casas baixas

De paredes sujas de graxa.

 

A tarde percorre as ruas

De olhos quase fechados

A rebater a luz

O último facho

Mourisco a desfalecer.

 

 

 

 

As águas da existência


Nada mais se detêm

Na correnteza do tempo

Um rio imenso

De águas cristalinas

A refletir o céu por inteiro:

Os peixes nadam no céu

Os pássaros mergulham nas águas.

 

As águas dos olhos

Inundando a terra firme

A salgar o trigo e o arroz.

 

Assim a vida surge

Num choro compulsivo

O choro que continua

Nos amores perdidos

Desespero que não se contêm mais

Mas o Nilo há de transbordar

E regar assim o ventre

Das mulheres jovens

Da água da vida.

 

Água que há de levar

Um dia

O corpo danado

Fonte de prazeres

De todo sofrimento

Ilusões de Maya

Nas correntezas do Ganges.

 

Prodigiosa água da vida

Também da morte

A escoar infinitamente

Em minha frente.

As águas da ilusão


Um vendedor de água

Ao lado do rio

Insiste em vender

Água gelada.

 

Quem haverá de comprar

Água ali?

O vendedor insiste

Não pode sair dali

Com as mãos vazias

Com as mãos a carregar

De volta

Água gelada.

 

 

Sensações


As tardes cada vez mais

Geladas

Esfriam os corações também.

 

A massa dos corpos

Moldados mal pendem

Numa gelatina

Tal uma lagarta a contorcer-se.

 

Apesar das vozes

Num silêncio profundo

Mergulha a alma humana

Sem alegria alguma

Sem tristezas

Nada mais se sente

Senão a sensação de um imenso

Confundindo-se em mim.

 

Nada se detêm


Tão maltratadas

As folhas da bananeira

Estraçalhadas ao vento.

 

Uma bandeira templária

Após uma batalha

Tão surrada pelo vento.

 

As bananeiras crescerão

Uma nova bandeira

A ser desfraldada.

sexta-feira, 20 de março de 2015

O mito e a submissão

Os deuses criaram
Os homens
Que criaram o mundo.

Os homens criaram
Os deuses
Que criaram o mundo.

Os homens pensaram ser
Deuses
Que criaram a fé
Que criou a crença
Fruto de toda ilusão
Que dividiu
Que estava unido.

Em nome dos deuses
Se matam homens
Alguns dos deuses
Se acham melhores
Querem submissão
De seus criados
Os homens querem submissão
De outros homens
Que resignados cedem
Criou neste momento
A dominação.


A eternidade

O que pode ser a morte
Senão uma esperança
De que o dia torne-se
Noite.

À noite repousamos
O corpo dilacerado
De uma batalha
Que há vencedores
Tão arrogantes
De uma certeza.

Os perdedores tão raivosos
De terem perdido.

A noite fechamos os olhos
Machucados de tanta luz
E no total silêncio
Ouvimos
O som do universo
Pulsando.

A morte é metáfora
Diante da eternidade
Tão distante da finitude
Humana
Uma bolha de vapor
A se espalhar

Na poeira cósmica.

O rio desta margem

Às margens do Rio Sanzu
As crianças sem pais brincam
Montanhas de pedra levantam
Surgem os demônios vermelhos
Brandindo bastões de ferro
Bastões batidos nas montanhas
Que se desmancham em pedras
Margeando o Rio Sanzu.

As crianças choram
Ninguém se intromete
As montanhas derrubadas
Às margens do Rio Sanzu
Os demônios brandem
Bastões de ferro
Mostram seus dentes caninos
Olhos saltados e negros.

Surge Jizô
Brandindo um cajado das seis argolas
Os demônios vermelhos se vão.

Jizô acalma as crianças
Ergue de novo as montanhas
De pedra.
Jizô se vai
Até o retorno de novo
Dos demônios vermelhos
Brandindo bastões de ferro...



Enfim chovia

Quando cheguei chovia
Chovia naquela cidade
Onde retorno às vezes
Onde meus amigos dormem
Em meu sono profundo.

Ando por caminhos que
Não reconheço mais
Caminhos que nunca existiram
Senão na vaga lembrança
Sem proveito algum.

O que me faz retornar
A um lugar tão distanciado
Que até os fantasmas desapareceram
Pelas ruas que outrora
Ainda viviam.

Uma indiferença apenas
Percorre-me as veias
Livres de sensações estranhas
De tentar agarrar nuvens.

Mas ainda assim
Hei de retornar
Até quando o sentido algum
Vencer todas as minhas
Resistências.

Quando cheguei chovia

Chovia naquela cidade...

Chá verde

Uma xícara de chá
Suave paladar
Suave amargor
Quente a estalar
Os dentes.

Uma xícara de chá
Tão verde suave
Suave amargor.

Uma xícara de chá
De sabor intenso
Suave amargor
Quente a estraçalhar
O coração.

Uma xícara de vida
Tão intensa e vivida
Neste exato momento
Suave perfume
Chá nas papilas.






Desfiladeiro das Termópilas

Os Trezentos de Esparta
Trezentos são os escudos
Trezentos são as espadas
Sem medo da morte
A morte recebida no peito
Aberto a varar a tarde.

As flechas caíram
Em intermitente chuva
Escureceu
Veio a noite por instantes.

As andorinhas deixaram
De voar
Os lobos deixaram
De uivar
E veio o silêncio
Por todo o desfiladeiro
Derradeiro silêncio
Em que não havia mais
Nenhum sofrimento.

Os Trezentos de Esparta
Morreram em pé
Em colunas
Escudos levantados
Sem poder deter
As pontas de ferro
Rabeiras de penas de ganso
Milhares de flechas
Zumbindo no ar
As cordas vibrando
Os arcos vergados
Dos braços dos persas.

Sem cantar vitória
Milhares de persas
Deixaram Termópilas.

O canto do poeta exalta
Os Trezentos de Esparta
Que nunca morrerão.