sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Antes que tudo passe

 

Antes que tudo passe

 

Sem que o passado nos incomode

seja o passado cinzas de papel queimado

seja lembrança a ser esquecida

posso contemplar o círculo solar

mudando de tom a cada instante.

 

A cada instante as folhas secas

despencam, forram a calçada.

Movimento a vassoura ininterrupto.

 

Todo dia caem

continuam a cair por todo o inverno.

O inverno também acaba passando

as horas de passagem passam

nem ligeiras demais

Apenas passam...

 

Somente a vida não passa

neste momento.

Como é eterno a vida que passa

passageiro de um expresso

que não retorna.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Ave das águas - poema

 Saracura ouve-se longe

de onde saracura lança seu grito

será de um morro que deixou de existir

de uma história que se perdeu

será de um negro fugido

de um gemido que abafou!


Saracura novamente se faz

ouvir

reclama do rio que secou

o rio que levava seu nome

Saracura Pequeno

saracura de tantas memórias

enterradas sob cimento

pede para nascer de novo

as águas que jamais pararam de fluir

as águas abençoadas de Saracura

também quero beber!.

Meus mini contos

Acordei. Começa o sonho.


Ninguém no velório. Uma voz.


Morreu. Diante, o macaco.


Pedir esmola do que roubar.


Pregue amor. Compre arma.


Vá com Deus. Deus obedece.






quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

 

Uma ode a Notre Dame

 

Ao dobrar dos sinos um lamento

Em que os miseráveis assistem

Impassíveis

Dos olhos dos santos

Qualquer desconfiança

 

Numa festa dos bobos

O rei dos bobos coroado

Com uma coroa de tolos

Quasimodo coroado

Corcunda de Notre Dame

De todos os indigentes

Ladrões e acomodados

Ciganos e maltrapilhos

Dos becos

Ruas sem saída

Morada dos cachorros vadios

Gatos paralíticos

 

Viva o rei dos bobos

Queremos o rei dos bobos

Quasimodo é o rei

No mundo de bobos

No país dos bobos

 

Paris em festa pede

Deus salve os bobos

Pois os bobos não sabem o que são

Apenas querem seguir

O seu rei

Tão bobo quanto eles

 

                                   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

A composição é agora

 

Não deve existir um momento que seja

Apropriado para compor um poema

Pode se agora

Depois se assim for

Nem os temas podemos escolher

O tema é sempre o do momento

Em que nada pensamos

Quem sabe lembramos

Um fragmento do tempo

Será a folha caindo

Será ainda se for

O saco arrastado do mendigo

O cabelo engomado do crente

Que os descrentes me perdoem

Se demônio não existisse

De quem seria a culpa?

 

Ainda que aquietemos a mente

Este braço que insiste em coçar

Sempre haverá lugar

Para um poema

Poder respirar.

 

 

A eternidade neste momento

 

Parece uma eternidade

O silêncio que desce com a poeira

Pelas paredes da sala.

 

Nada existe de mistério

Nesta sensação de estar presente

Com todas as lembranças de um passado

Que lentamente vai se desfazendo.

 

Há um momento que temos como amigo

Uma sombra que chega

Sem nome

Sem nada dizer permanece

Por segundos

Um instante de um soluço.

 

Como a eternidade lenta

E lentamente vai se fazendo

Diante de mim

Dentro de mim...

 

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

 

Onde se encontrará?

 

Que poderia ser afinal

Felicidade?

Seria uma invenção dos incautos

Podia ser uma palavra inventada

Nos dicionários

Poderia ser algo que incomoda

Que não podia se realizar

Não agora

No futuro talvez

Nesta vida ou numa outra

Não sabia

Nem sabia que havia

Uma outra

 

Ninguém sabia a respeito

Com o respeito da palavra

Um palavrão que assustava

Felicidade

 

Um dia parou de procurá-la

Ficou quieto

De repente entendeu

Nada depois

Nada antes

Sorriu

Apenas sorriu

 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

 

Aquela que queria ser santa

 

Maria queria ser santa

Sem pecados

Sem maldade alguma

Só lhe faltavam asas

 

Maria queria ser santa

Com todas as vaidades

Com todas as mentiras

Queria ser o que não haveria

 

Maria sofria

Maria das dores

Maria iludida

Maria que vai com as outras

Maria um dia

 

Maria queria ser lembrada

Como santa

Maria foi por fim

Esquecida

 

Maria que ninguém mais

Se lembra

Apenas Maria

Entre tantas outras

 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

 

Um ser desterrado

 

Por muito havia passado

Em que em minha terra

Sentia-me parte

Sem parte em nada mais

Sou um ser desterrado

Agora

 

Nenhum discurso me atrai

Nenhum sonho mais sonho mais

Só me restou a retirada

A que ninguém incomodasse

Se rastros deixei

Que possa apagar

Amigos

Sim estes permanecerão

Como sombras

A rebater numa parede

Em que desenhei

Um Buda em permanente

Silêncio

 

 

Primavera

 

Este entardecer de primavera

A cair como um véu tênue

Faz dormir uma criança

Que em mim ainda habita

 

Sou pássaro errante

Navegando com o vento

sexta-feira, 27 de abril de 2018

A chama e a água

Meus olhos de água
não conseguem apagar
a chama dos insensatos.

Que resta do mundo senão
insensatez.

Que resta do mundo senão
seis olhos finos.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Os olhos de Ana Maria

Quem deixou se navegar pelos olhos de Ana Maria
Jamais voltou para contar, senão enlouquecer de amores
Pois perigos são muitos na turbulência de águas insanas
Negritudes de uma noite sem estrelas para guiar
A popa, em cujo lumiar cada vez mais derrotado
Pelo canto que vem chegando e encharcando
Os tímpanos de sal que em cristais vai alojando.

Arrebatado pelos redemoinhos atlânticos
Muitos se aventuraram a perder-se completamente
Pois Ana Maria desconhece o destino infeliz destes marinheiros
Que encalham suas carcaças, barcas de velas arrancadas
Numa tempestade em que Netuno faz tremer seu tridente
Prateado, a exibir seu corpo regado de algas e mexilhões.

Daqueles que retornaram e sentiram o gosto amargo
Da bílis arrancada aos solavancos do mar revolto
Caminham pela prancha em desatino
Carregando no rosto um sorriso estranho
De ter vivido todas as emoções
Aquelas mais profundas
Mas sem arrependimento.

Os olhos de Ana Maria
Eram tão belos
Como asas de passarinho
Como passarinho frágil e selvagem
Jamais serão de alguém
Serão meus em meu pensamento

Tão líquidos como aqueles....

terça-feira, 28 de abril de 2015

As tardes longas

Outono percorre as ruas

Num ônibus da periferia

Entre casas baixas

De paredes sujas de graxa.

 

A tarde percorre as ruas

De olhos quase fechados

A rebater na luz

O último facho

Mourisco a desfalecer.

 

 

A casa antiga


Uma escuridão percorre aquelas

Paredes, não sei bem

Se de desgosto consentido

Se de tristeza que perdura

Numa sombra alquebrada

A debruçar solenemente

Ao final da tarde.

 

As mesas em desalinho

Isentos estão de ternura

Uma toalha branca bordada

Recolhida às pressas

Sem maior serventia.

 

As vozes calaram-se

Em festas que não há mais

Dos aniversários passados

Não restaram nem lembranças

Que se vão diluindo

Numa casa mais vazia.

 

Nem as roseiras ficaram

Arrancadas do lado

Num canteirinho que

Vicejam as ervas

Daninhas e o musgo

Resistentes ao tempo

Verdejante se vinga

Esparramando-se no abandono.

 

Casa que em momentos

Derradeiros um anjo de branco

Passou

Num mármore passou seu lenço

Fazendo girar a roda do tempo.

 

Ficarão nas paredes

Sob as tintas a saga dos heróis

Do passado

Que respingam agora

Respiram sossegados.

Caminhante solitário


Nada mais precisa

Um Arhat:

Os panos do corpo

Uma tigela nas mãos.

 

Caminha sua trilha

Sem se deter

Sem medo dos bosques

Escuros

A escuridão da alma

Em que esconde a vaidade

Os rancores também

Escondem-se os demônios

De formas variadas

Alguns são azuis

Outros amarelos

O maior de todos

Tem a nossa cara

E todos os nossos vícios.

 

 

 

Escorre-se agora


Outono passageiro chega

Multiplicando nas esquinas

Olhares tristonhos que não tenho

Que vagueiam pelo chão

De um mosaico sinistro

Um profundo vazio.

 

Das janelas altas

Da velha São João

Uma mulher de vermelho

Assiste o mundo passar

Os carros passam

Ou serão tartarugas com

Carapaças de aço?

 

A manhã passageira

Também passa

As águas perdidas do esgoto

Haverão de passar também

Enquanto isso a vida inteira

Vai se esvaindo agora

Num ralo fininho

A derramar por inteiro

No mar imenso

Onde tudo se origina

Salmoura da existência.

 

As tardes longas

Outono percorre as ruas

Num ônibus da periferia

Entre casas baixas

De paredes sujas de graxa.

 

A tarde percorre as ruas

De olhos quase fechados

A rebater a luz

O último facho

Mourisco a desfalecer.

 

 

 

 

As águas da existência


Nada mais se detêm

Na correnteza do tempo

Um rio imenso

De águas cristalinas

A refletir o céu por inteiro:

Os peixes nadam no céu

Os pássaros mergulham nas águas.

 

As águas dos olhos

Inundando a terra firme

A salgar o trigo e o arroz.

 

Assim a vida surge

Num choro compulsivo

O choro que continua

Nos amores perdidos

Desespero que não se contêm mais

Mas o Nilo há de transbordar

E regar assim o ventre

Das mulheres jovens

Da água da vida.

 

Água que há de levar

Um dia

O corpo danado

Fonte de prazeres

De todo sofrimento

Ilusões de Maya

Nas correntezas do Ganges.

 

Prodigiosa água da vida

Também da morte

A escoar infinitamente

Em minha frente.

As águas da ilusão


Um vendedor de água

Ao lado do rio

Insiste em vender

Água gelada.

 

Quem haverá de comprar

Água ali?

O vendedor insiste

Não pode sair dali

Com as mãos vazias

Com as mãos a carregar

De volta

Água gelada.

 

 

Sensações


As tardes cada vez mais

Geladas

Esfriam os corações também.

 

A massa dos corpos

Moldados mal pendem

Numa gelatina

Tal uma lagarta a contorcer-se.

 

Apesar das vozes

Num silêncio profundo

Mergulha a alma humana

Sem alegria alguma

Sem tristezas

Nada mais se sente

Senão a sensação de um imenso

Confundindo-se em mim.