Quantos anos se passaram desde que pela última vez estive em Lima? Houve época em que estas viagens eram mais comuns. Ficava a lembrança das ruas do distrito de Miraflores, que novamente tive a oportunidade de percorrer. Lá estava a mesma livraria em que comprei certa vez Conversación en la Catedral, do peruano Mario Vargas Llosa. Não o li ainda, mas o farei oportunamente. Do lado esquerdo da catedral principal de Miraflores, uma quantidade grande de bares e restaurantes. Lembro-me também de ter saboreado pela primeira vez Casilero del Diablo, vinho chileno, bastante contraditório para a ocasião. Não que faltem vinhos peruanos de boa qualidade.
As pessoas que caminham por Miraflores são quase sempre brancas, dizem eles, descendentes de espanhóis. Quando a noite cai, numa praça próxima, uma área de lazer, em mesas de pedra, nas inscrições de um tabuleiro de xadrez, velhos disputavam partidas. Na própria praça da catedral, num dia festivo, havia pessoas se divertindo num animado baile. Nada lembrava o Peru dos indígenas, tão comuns na parte central de Lima. Quando estive em Lima em fins da década de 90, pareceu-me que estes nativos mostravam feições duras no rosto queimado. Estávamos no governo de Alberto Fujimori (1990 a 2000). Justamente aquele que disputara a eleição com Vargas Llosa e deu-se melhor. Naquela época, a economia não era das melhores e o preço das mercadorias das vitrines em dólar americano.
Nada mudou, passados quinze ou mais anos, depois daquela viagem. No entanto, nesta última, alguma coisa está diferente. Fiquei feliz. Parece que a economia melhorou. O governo Fujimori se foi, vieram outros, um, dois, três presidentes. Mas quando se conversa com o motorista da van que alugamos, ele se mostra saudoso de Fujimori. Diz que teria sido ele o responsável pelo fim do terrorismo, quando o espetáculo pirotécnico das explosões dos carros no centro de Lima era constante. Uma guerrilha rural atacava também as cidades, quer dizer, Lima. O famigerado chamava-se Sendero Luminoso e Tupac Amaru.
Muitos eram os carros velhos, alguns com as partes batidas, rodando a vontade pelas ruas. De certo, houve mudanças. Os velhos continuam existindo, mas a frota daqueles velhos foi substituída. Num país em que inexiste a indústria automobilística, a importação é um fato comum. Num trânsito confuso como o de Lima, os autos não são produção nacional. Entre os populares, havia muitos de segunda mão. Letras coreanas eram uma constante nas caminhonetes e outros utilitários. Estes parecem ter desaparecido. Dá a impressão, inclusive, de que os amassados também acabaram como sucatas. As vans que levam os passageiros de um ponto para outro, da grande Lima, ainda hoje não apresentam condições longas de uso. Deteriorados igualmente pela poeira fina que cai sobre a cidade. Poeira esta que não cai em Miraflores.
Num bairro de classe alta de Lima, onde fica o Museu do Ouro, as escolas do primeiro e segundo grau causam inveja em instituições do mesmo quilate dos países do primeiro mundo. Um quarteirão inteiro para acomodar a escola. Ao lado da calçada, uma fileira de carros caros espera as crianças para o traslado. Muito diferente das escolas da periferia, das cidades satélites de Lima, em condições precárias. Pequenos de feições indígenas disputam um lugar nas carteiras sujas e riscadas. País de imensos contrastes. Os bolsões de pobreza, de um país que começa a recuperar-se, ainda são constantes: quantidade de favelas e construções irregulares, como as das cercanias do Aeroporto Internacional Jorge Chávez. Falta acabamento nas paredes, sem pinturas, construções com corredores escuros. Algumas dessas residências não possuem, inclusive, um teto. Na verdade, nunca choveu em Lima nos últimos anos. A informação é de que houve água em 1982. Depois disso, muito humidade à noite, sendo que durante o dia, um sol curtindo a pele morena da maior parte da população.
Para quem deseja sair de Lima, seja para o sul, em direção a Cusco, seja para o norte, para Chiclayo. Existe uma rodovia, a Panamericana, que vai serpenteando a partir do Chile, passando depois pelo Peru, Equador, Colômbia, toda a América Central, depois o México, a costa da Califórnia para terminar no Canadá. A quase duas horas de Lima chega-se a Huacho. Conhecia Huacho de outras paradas, pois pretendia subir mais, até Chimbote. Muito deserto neste trecho, com cidades que mais parecem vilas, em que o meio de transporte metropolitano é um triciclo fabricado na Índia. Uma espécie de moto taxi, cuja corrida compensa: 2 soles e para levar até três passageiros. Não existe ônibus urbano em Huacho. A rede hoteleira é razoável para quem não exige muito conforto. Fiquei num Hostel, uma forma de hotel mais simples, com quartos simples e sem café da manhã. Existe televisão posto numa armação que sai da parede. Um armário para guardar a roupa e, ao lado, um banheiro. Havia um odor nada agradável no banheiro, talvez devido os encanamentos desgastados. Chuveiro, não havia um propriamente dito. Mas do resto, estava limpo.
Era 31 de outubro em Huacho. Nesta localidade comemora-se em procissão um ardoroso lamento ao Señor de los Milagros, que sai da igreja local. Se não tivesse visto, não acreditaria. Dentre os significados a respeito do Peru, pode ser que esta manifestação religiosa folclórica tem um ponto a ser ressaltado em sua importância: o sofrimento. Um andor em que levava a imagem do deus agonizante na cruz desfilava em marcha pelas ruas estreitas. Na frente eram nove homens, divididos de três em três, correspondentes aos apoios que escoravam nos ombros. Na parte de trás, situação semelhante. O peso devia ser enorme, pois a marcha era conduzida lentamente, arrastando os pés, repetindo a via dolorosa. Uma capa grossa de cor lilás e uma corda envolta no pescoço, imitando um laço de forca. Uma banda tocava uma música dramática, capaz de levantar os pelos do braço. Isso não se compara com um grupo de mulheres que ficava na frente da imagem, que caminhavam de costas e levando na mão um incensário, na outra o rosário. Elas cantavam melancolicamente alguma misericórdia diante do deus martirizado, mas capaz de realizar milagres.
Justamente realizado em 31, data estranha, que corresponde ao dia que antecede os finados. No Peru o finado acontece no dia 1. Em contraste com o drama que acontece em Huacho, em Lima, à noite, no bairro de Lince, mais parecia um festival em outra parte do mundo, menos no Peru. Entretanto, era no Peru que isto acontecia. As crianças vestidas de bruxas saiam pelas ruas para divertir-se. Parece ser um bairro comercial, ao lado de um outro, Jesús Maria. Muitas casas de jogos, os cassinos iluminados pelos letreiros em letras imensas e chamativas. Havia também uma casa de karaokê. Não bastasse isso, os restaurantes como Mac Donalds, para os jovens e crianças, outras igualmente populares, portanto de preços atraentes. Quem está no Peru não passa fome. A culinária é realmente impressionante quanto à variedade. Pode-se saborear cebiche, um prato típico do Peru, embora os colombianos também digam o mesmo a respeito deste prato. Feito de peixe fresco e cru, temperado com limão, cebola e outros condimentos. O caldo do ceviche chamam-no de leite de tigre. Quem provou, com certeza vai repetir. Para beber, Inka Cola, bebida feita de suco de erva-doce. Em outros tempos foi o símbolo do Peru, concorrendo com a Coca Cola. Mas quem está no Peru, deve consumir, pelo menos uma vez, a Inka Cola. Atualmente, com surpresa vi na embalagem da Inka Cola, seu novo proprietário, a Coca Cola. Além desta, a empresa tem os direitos numa outra bebida, de cor vermelha: Coca Inglesa.
País estranho, quer dizer, inesperado, em que os contrários estão presentes em cada esquina. Numa grande rede de supermercados como o Metro, com as prateleiras repletas das mais diversas mercadorias, uma infinidade de fregueses enchendo os carrinhos com o necessário e com o supérfluo. Num momento podemos estar na região mais rica do país, num outro, nas periferias das ruas sem calçamento, falhas na construção. Em plena Miraflores, os doleiros com suas capas oficiais, negociam todas as moedas conhecidas, inclusive o real. Estes estão espalhados nas ruas, misturadas à população sem causar maiores interrogações. Segurança? Existe um fetiche pelos homens e mulheres de uniforme, seja no trânsito, seja na patrulha pelas ruas.
Quando o assunto é literatura, parece que os peruanos apreciam o gênero. Afinal é a terra de Vargas Llosa, que preferiu morar na Espanha. Depois do malogro eleitoral, ele preferiu respirar outros ares, do outro lado do mundo.
Nesta última viagem, ficou uma esperança em meu coração: até na América Latina a mudança é possível? Ficou uma vontade imensa de voltar novamente e tomar Inka Cola e uma sopa de pollo. Nunca comi tanto frango como naquele país. Pelas ruas de Lince, pelas esquinas, carrinhos vendem sanduíches e para beber o emoliente. O que pode ser isso? Um caldo quente, preparado com a mistura de ervas e plantas. Nada mal. Um copo custa menos que 1 sol. Pode agradar os gringos e tem uma grande procura pela população local.
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