terça-feira, 29 de maio de 2012

Companheiros, cachaça e haicai

Encontro com amigos
O que pode ter de original no encontro de quatro amigos num bar de esquina? Aparentemente,  comum.  Mas havia algo a mais para estes encontros:  a informalidade da presença de nosso mestre. Lá pelos idos do fim do século passado. Parece que se passaram tantos anos? Pouco mais de uma década. O centro das atenções era o nosso saudoso M.Masuda Goga. Acontecia sempre após as reuniões do Grêmio Haicai Ipê, numa sala de aula da Aliança Cultural Brasil-Japão, da Estação Vergueiro. Despedíamo-nos dos amigos, logo após a reunião, e conduzíamos o mestre para o bar “A Juriti” numa das travessas da Rua Lins de Vasconcelos, Bairro da Aclimação.
Com problemas acentuados de surdez, Goga pouco participava das conversas, por isso ele criou outra forma de integração entre os membros. Ele apresentava um haicai, na verdade o hokku (primeira estrofe) de um kasen (encadeado), que passava para o companheiro do lado. Não eram muitos os participantes: no máximo seis, menos. Todos contribuíam, ora compondo em três versos, ora em dois versos, alternadamente. Naquele início de noite chegávamos a compor quase dez estrofes.
Reuniões que acabaram quando Goga, em 2000, decidiu afastar-se das atividades do Grêmio Haicai Ipê, pois acalentava viver num sítio, ao sul de Minas Gerais, próximo do município de Formiga. ”Sou vizinho de Furnas”, dizia. Nunca mais estas reuniões voltaram a acontecer. Somente com o falecimento de Goga, em 28 de maio de 2008, no final do mesmo mês os quatro amigos resolveram novamente reunir-se e homenageá-lo.  Não foi mais no mesmo bar, num outro na Avenida Liberdade, que atualmente está com as portas fechadas. É uma construção antiga, talvez, por isso necessitasse de reformas.
Por isso, este ano, em 25 de maio, novamente os três se encontraram.  Claro, não se trata de um erro, queríamos tanto que fosse.  Pudera os quatro novamente encontrar-se.  No ano passado, o companheiro Alberto, um mês após aquele encontro também se foi.  O encontro aconteceu numa pizzaria chamada Ikiru, na Galvão Bueno, ambiente aconchegante, com inúmeras fotos antigas da imigração japonesa. Lá na mesa dos fundos, estávamos, e pedimos como de costume: três doses de cachaça São Francisco. Era a forma de lembrarmo-nos do mestre, que apreciava a bebida. Nunca fui um aficionado por ela, mas nesta noite tem um gosto especial. Assim nos saudamos, a maneira pouco convencional: “aos amigos, que estejam bem, onde quer que estejam”.  Sem demonstrar tristeza, nem saudades. De fato, neste momento, os amigos sempre estarão conosco. “Onde quer que estejam” é apenas uma maneira de dizer “vocês vivem em nossos corações, enquanto pudermos compor”.
Colocamos a conversa em dia, e iniciamos a composição:
Noite de outono.
Estudantes e famílias
passeando nas ruas.
Gin-ga

O mendigo toma gole
entre flores de paineira...
Sennin

Quebrando o silêncio
um grilo insiste em cantar
num velho coreto.
Jishô

Sai a banda de velhinhos
tocando hinos de outrora.
Gin-ga

No Dia da Pátria
ainda firme no horizonte
uma lua pálida.
Sennin

Ao caminhar pelo charco
brilham os olhos das rãs.
Jisho
Assim acabamos o encontro da noite, na mesa, inicialmente doses de cachaça, seguido de uma garrafa de cerveja e uma porção de carne seca desfiada. Estávamos no Bairro da Liberdade, numa sexta-feira. Quando deixamos o local, aproveitamos o fluxo de estudantes de educação física da FMU, que tomava rumo semelhante em direção à Estação São Joaquim.
Nunca nos preocupamos em divulgar o trabalho, quer dizer a composição conjunta, menos importante do que o encontro em si. O importante é a amizade, por isso o haicai existe, ensinava Goga. Uma vez composto, aquilo que ficou para trás se torna, segundo ele “num papelucho”, assim declarou.
Fica-nos uma lição. O haicai é transitoriedade, o mesmo se aplicando para a vida. Nada pode ser detido na corrente constante do movimento que gera a vida e também o perecimento. Cada momento é um momento novo, que não se repetirá. Cada paladar não pode ser comparado, nem o olhar, nem a audição, nem a subjetividade daquele instante. O que nos resta é apenas apreciar as sensações, numa atitude de não intervenção, e perceber que nada se encontra separado neste universo. Nem é o haicaísta que compõe os elementos da natureza à sua volta, como fosse diferente daquela. É a própria natureza compondo, pois o homem é parte dela, um organismo vivo e em transformação, sem um ego que possa sobressair-se, portanto um autor que possa deter unicamente a autoria da composição.
Evidentemente  nos encontraremos outras vezes, enquanto pudermos viver o momento presente, o mais precioso em nossas vidas.  E sabemos que o presente é fugaz, não pode ser detido, nos escapa entre os dedos se tentarmos segurá-lo. O presente carrega em si o passado, que deve ser abandonado. Não penso que o haicai seja uma tentativa frustrada de deter o presente. Um haicai composto já é passado, mas o haicai a ser composto neste momento, bem diferente, trata-se do momento presente.  É disso que nos falava Goga.
A Juriti fica na rua Amarante, 31.
A Pizzaria Ikiru fica na rua Galvão Bueno, 643.

Nenhum comentário:

Postar um comentário