quinta-feira, 28 de junho de 2012

Uma vida atrás

Uma fumaça branca
Eis que se ergue
Após o passo dado
Passo dado adiante
E todo esforço
Fora em vão
Como não tinha sido
Outrora
Agora não passa
De um sonho
Que de pouco a pouco
Vai se apagando
E se tornando cinza fria
A se esparramar
Pelos caminhos andados
Caminhos a que não se retorna
E nem saudades fica
Nem um pouco desta saudade
Que incomoda
Esta alma errante
Ignorante por natureza
Teimosa por ser ignorante.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Uma tentativa mal sucedida

Se esquecimento fosse uma palavra
Uma palavra não seria
Mas ainda não seria
Solução
Se esquecer fosse a vontade
Nada disso aconteceria
Nem por vontade
Nem por falta de vontade.

Esquecer é deixar de viver
E apagar um passado
Que existe somente
Nas reminiscências
Mesmo assim
Não poderia ser
Simplesmente esquecido
Como cão abandonado
Após convivência em comum.

Ainda que fosse possível
Não esqueceria
Ainda que as dores passadas
Fossem apenas passadas no tempo
Ainda assim
Não seria desta forma.

domingo, 24 de junho de 2012

Pelas ruas pouco conhecidas

Numa esquina estava
Uma moça que levava
Numa mão uma rosa
Uma rosa vermelha
Não sabia quem era
Nem tinha certeza
Nem queria saber
Quem era ela
Era noite funda
Profunda era a incerteza
De minha vida
Vivida unicamente
Naquele momento
Em que via
Uma moça que levava
Uma rosa vermelha...

terça-feira, 19 de junho de 2012

Sou o mundo agora

Nem tristeza
Nem alegria
Apenas a respiração
Lenta
A respiração cardíaca
E como companheiro
O silêncio que vai preenchendo
Cada vez mais
A tarde que vai
Se retirar
Neste exato
Momento.

Pensava ser verdade

Quando acordei
Lavei minha cara
Era uma cara comprada
Numa loja de fantasias
Uma cara de palhaço
Com nariz vermelho
Um palhaço que tinha nome
E assim passou a existir
Que trabalhava
Que vagabundeava
Pelos rincões desta cidade
Um palhaço que pensava
Existir
Mas não passava
De uma máscara
Que pensava que a máscara
Era a sua cara
Sua cara?
Todas as caras vendidas
Numa casa de máscaras.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

As ilusões desta vida


Sorria
Um sorriso aberto
Um Buda sorria
De cima de seu assento
De cima de uma montanha
Sorria
As ilusões deste mundo
De nascimento e morte
De dia e noite
De ventania e calmaria
Dos encontros e partidas
De amor que não passa
De uma palavra inventada
Só para enganar
Os desavisados.


Atirador de pedras

Atire a primeira pedra
- no pássaro preto.
Atire a segunda pedra
-no pássaro preto.
Cada vez mais ferido ficou
Quem a pedra atirou
O pássaro se foi
O pássaro nunca esteve
O pássaro não passou
De uma ilusão de imagem?
Uma ilusão que pousou
No muro de meu jardim.

Noite solitária

Nos olhos entrecortados
A tarde deita-se atrás das nuvens
Num sono agitado
Em que os gatos
Caçam andorinhas
 Que despencam dos galhos
Curvos e ressecados
De final de outono.

Quando as luzes acendem-se
Nas lanternas japonesas
Uma brancura leitosa
Começa a derramar-se
Sobre as nossas capas
De uma chuva passada.

E por estes caminhos
Que os pés insistem em pisar
Só pisam em espinhos
Deixando um rastro
Sinuoso de lamentação.

Assim o vento sussurra
Suave canção de minar
Canção que vai morrendo...


domingo, 17 de junho de 2012

Um fado cantado

Numa janela havia
Uma triste melodia
De um país distante
Além destes mares
De saudade chorava
Era Amália Rodrigues
Que se afogava
Nas beiras do Tejo.

Correndo contra o vento

Nenhuma saudade ficou
Mas ainda que pudesse
Esquecer
O passado é ardiloso
Muito mais do que
A vontade
De sofrer de uma amnésia
Consentida.

Caminhante noturno

Nestas noites longas
Em que os passos longamente
Estendem-se pelo espaço
Mal pisam o chão
Cada vez mais distantes
De uma experiência visceral
Senão vivenciada
Em seu mais profundo
Mar de incertezas.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Os pés que pisoteiam

Apenas havia
Naquele caminho de sempre
Folhas secas
Que desprezadas
Foram pisoteadas
Sem piedade.

Os mesmos pés
Que incessantemente
Não se cansam
De pisotear
Este chão sagrado
Morada dos deuses
Que sustentam
Nossas casas
Nossos estômagos
Sedentos de alimentos
Que bebe da terra.

Ainda assim
Pisamos
Com sapatos
Impuros
De toda insolência
Humana.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Só vou com o vento

Sem nenhum passado
Que se foi com o vento
Sem futuro vindouro
Que distante ficou
Sou tenho o presente
Que nem posso reter
Entre os meus dedos
Se assim pudesse ser.

Para quê as lembranças
Fumaças do tempo
Que de tempo em tempo
Vão se dissipando
Em minha memória.



Eterno peregrino

Daquilo que ficou
São as nuvens de Shogoji
Abaixo das montanhas
Brancas
Em que podiam se caminhar
Sem afundar as pernas
Nos alagados dos arrozais
Nos carvalhos vetustos
Em que vivi
Meus melhores dias.

Ainda caminho
Pelas mesmas trilhas
Que um dia
Caminhei.

Ainda existe em mim
A mesma escadaria
De pedras pontiagudas
Precipícios
Em que caíram
Guerreiros de outros tempos.

Uma vez que lá esteja
Nunca mais saímos de lá
Onde quer que possamos
Caminhar
Caminhamos a mesma trilha.


O homem do vigésimo sétimo andar

CONTO

            - Bom Dia – disse para a mulher que levava a filha ao colégio. A menina devia ter uns quatro anos, metida num avental cor de rosa, com inscrições em marrom, algo como “Jardim do cavalo marinho”.
-         Bom Dia – repetiu, quase automaticamente.
            Depois vieram outros, o Afonso, um negro simpático, cuja arcada dentária parecia mais branca naquela manhã. Dizia trabalhar por conta própria numa distribuidora de água potável. Entrou correndo no elevador Joana, que era enfermeira e cuidava de pessoas idosas. No momento, estava a serviço de uma mulher de oitenta anos, judia, que quando enfurecia-se passava a praguejar em língua desconhecida. Naquela rotina, o “bom dia” soava agradável, entre pessoas às vezes estranhas. Muitos ingressavam naquele condomínio, ficavam por algum tempo, e assim que a amizade se tornava mais acalentada, não sei porque cargas d'água, desapareciam. Pessoas discretas, poucos eram proprietários.
            Pela tela, os moradores se tornavam artistas para a segurança, que localizava-se na recepção. Era de lá mesmo que comumente, o porteiro anunciava, para um, para outro, a chegada de alguma encomenda especial. “Oi Fernanda, passa aqui, tem um pacote para você”. Parava então no térreo, atrás de si, outras tantas, que continuavam em direções diversas. Alemão era o porteiro, que nada tinha de germânico, nem mesmo o sotaque, que carregava nas declinações do interior da Paraíba. Chamavam-no assim devido a sua pele branca, melhor dito, era albino. Era ele que passava o pacote fechado em cujo conteúdo: remédios de uma farmácia de manipulação.
            A conversa era sempre breve nestes encontros no elevador. Naquele prédio havia três, sendo que um era de serviço, em que os faxineiros levavam baldes de água e detergente para a limpeza dos corredores. Se quisesse arriscar, ficava por conta do próprio morador. Seria transportado também ao lado de sacos de lixo, imensos de 100 litros. Nada muito interessante, se comparado com os sacos de plástico de um certo vizinho que, em torno de duas vezes por semana, alinhava pelo corredor pouco mais de dez sacos devidamente amarrados pela boca. Que poderia ser aquilo? Ninguém tinha nada a ver com isso, assim os sacos desapareciam, não se sabe, para dentro do apartamento ou num desses elevadores após as 22 horas.
            Havia o homem de cerca de cinqüenta e cinco anos, de origem oriental, supostamente japonês, que morava naquele condomínio. Era sozinho. Sempre muito bem vestido, de preferência esportivo, com camisas de gola olímpica e calças feitas sob medida. Sempre na parte da manhã, às 7 horas, ele deixava a moradia e confundia-se na multidão das cercanias da rua Augusta. Voltava depois das 18 horas.
            Entre os moradores antigos ele era bem conhecido. Chamavam-no de Senhor Junichiro,         que os outros achavam difícil de pronunciar, por isso era apenas “seo Juni”. Antes de subir ao apartamento, passava pela recepção e recolhia as correspondências, muitas em envelopes com inscrições em caracteres incompreensíveis. Nem mesmo o correio poderia decifrar aqueles signos. Mas chegavam ao destinatário. (Só podia ser dele). Tanto  que, assim que tais correspondências eram entregues na portaria, o porteiro deixava de lado para o  “seo Juni”.
            Ninguém sabia a seu respeito. Nem era ele alguém que pudesse despertar qualquer dúvida sobre sua índole. Falava português com regularidade, que demonstrava ter domínio da língua. Comunicava-se bem e se comportava de maneira educada. Tinha os cabelos brancos, um tanto longos na parte dianteira, que ele com maestria jogava para o lado, mas ao abaixar sempre caíam. Era apenas um dos moradores naquele condomínio, cuja vida menos importava para os vizinhos e funcionários, numa relação amigável e tanto impessoal.
            Talvez ele fosse aposentado, tivesse trabalhado em multinacional japonesa do setor eletrônico, instalado por aqui na década de 70. Era uma possibilidade. Certa vez ele desceu do prédio com uma caixa de cds, com gravações de óperas italianas, estas comuns como Madame Butterfly, de Puccini. “Nossa, o senhor tem gosto apurado”, adiantou-se Américo, um advogado que trabalhava no Tribunal Regional do Trabalho, na Rua da Consolação. Riu e tentou desconversar. “Nada especial, apenas um passatempo”.
            Numa conversa anos antes, o “seo” Juni, naquele mesmo elevador, teria dito que estudara literatura italiana na Universidade de Tóquio e que, um dia ainda, depois de encerrar as suas atividades profissionais, voltaria para o Japão e poderia assim dedicar-se ao que mais gostava de fazer: lecionar italiano. Confidenciou também que lera a Divina Comédia no original e também fascinado por Luigi Pirandello. Nenhum desses sonhos acabou realizando.-se Por algum motivo, ou sem ele, os planos mudaram.
            Muitos foram os empregados da portaria, que depois de três anos, um pouco mais ou menos, eram dispensados pela síndica. Um destes, empregado de confiança da síndica, acabou passando uma informação cara demais para um inquilino, que arrematou um apartamento com preço baixo. Ela se sentiu ultrajada pela iniciativa do porteiro, pois ela própria se mostrava interessada no negócio. Fatos como estes demonstrava as transformação em que passava entre os funcionários, inclusive com a própria síndica, que morreu sem amigos em sua despedida num leito do pronto-socorro. Ninguém fora convidado para o ato fúnebre, além de suas duas irmãs solteiras, ela própria viúva.
            Por tais acontecimentos, poucos eram os que intrometiam na vida alheia, sendo que na de “seo” Juni, não se sabia muito. Ele sempre mantivera certa distância no que dizia respeito a assuntos pessoais. Pelo que saiba, visitas também não eram comuns em sua casa, mesmo do encanador, do homem da tv.
Nem por isso, nada disso, parecia incomodar alguém, levando-se em consideração o alto nível de ocupação daquele condomínio. De estranho, se este era a palavra a ser considerada, muitos outros tinham motivos maiores para comentários. No décimo andar o Lúcio Henrique, com suas tatuagens escorrendo pelos braços, dentes afiados de um demônio azul e vermelho prontos a estraçalhar o primeiro desafeto. Sem falar na Andréia de Freitas, que fabricava  suas poções mágicas, unguentos amorosos, pestanas de sapo, antenas de lacráia ou coisa que o valha. Muitos estranhos, por outro lado, aceitos como vizinhos toleráveis e, por que não dizer, divertidos por suas manias e neuroses.
            Numa dessas ocasiões, próximo à entrada do prédio, alguém chamou o “seo” Juni ao canto e entabulou uma conversa. Muito a vontade, o outro parecia conhecê-lo bem, não se sabia se morador ou não. Do outro lado, o segurança ouvia sem grande interêsse. Pelo que ficou na conversa, “seo” Juni morava no estabelecimentos há mais de vinte anos, no vigésimo sétimo andar, no número 273. Só ficou uma dúvida: não existia aquele andar no prédio. Tinha apenas vinte e seis andares, sendo que no suposto vigésimo sétimo era uma área que apenas abrigava a casa do zelador. Ninguém mais vivia lá. Mesmo assim, todos os dias o “seo” Juni, descia de seu apartamento, que ficava naquele andar? Somente ele conseguia chegar até nele. Poderia parecer estranho, mas não o suficiente para incomodar quem quer que fosse. Não era problema, desde que ele continuasse pagando o condomínio e não se intrometesse vida alheia. Menos isso, menos isso.

Manhãs que não acabam


Uma instabilidade temporária
Em tempos de chuva
A alma liquefeita
Escorre pelas ruas
Sem pressa alguma
Por chegar a algum lugar.

Nunca chegamos
Sempre estamos
No mesmo lugar.

Como é agradável
Ouvir
A chuva caindo devagar
Nestas manhãs alongadas
De outono.
Como o outono demora
Para passar.

domingo, 3 de junho de 2012

Muito fluido

Apenas imagens
Que numa fumaça
Foram se dissipando
Como nada tivesse
Importância
Um filme antigo
Que uma vez visto
Não se repete mais.



O pássaro criador

Ainda que mergulhemos
No mais profundo
Sentimento
Num mar sem fundo
Nada mais existe
Do que o silêncio
Silencioso e derradeiro
De uma tarde
Em que sorrateira
Uma gralha azul
Inventa a vida
De um galho ressecado
Que balança
Ao sabor do vento.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

O que queima

Uma borboleta de cristal
Reflete um azul infinito
Vindo do mar
Vindo do céu
Vindo de todo lugar
Dos olhos de Mariana
Que ardentes
Provocaram em minha pele
Uma queimação apaixonada
Que ainda guardo
Como prêmio.


Entre as paredes

Perdoem-me
Minhas limitações
Por não ter estudado
Matemática
Nem geometria.

Perdoem-me
Minhas limitações
Por não ter sido
Um atleta competente.

Perdoem-me
Minhas limitações
Nos estudos elevados.

Perdoem-me
Minhas limitações
Por não tocar flauta
Nem saber cantar.

Nesta vida inteira
Pouco fiz
Não tomei bebedeira
Não conheci Paris.

Nem fui bom
Um tanto mau
Por isso uma acidez
Contínua me destrói
O estômago.

Fui um mentiroso
Que acreditava ainda
Que ainda
Uma garota de olhos grandes
Haveria
De ser musa eterna.
Que escrever espantava
Uma solidão permitida
Dos desvairados
Presos em seus quartos
Cuja poeira
Caia densa
Num assoalho de cera
Vermelha.




Um passo atrás

O que pode sustentar
A inércia deste corpo
Maltratado pelo vento
Que caminha de costas
Sem ver adiante
Vendo sempre
Os próprios passos
Se apagando ao relento
As marcas postas
Numa trilha de cal.

E tudo se passa
Em instantes
Numa vida que passa
Num passado que passa
Na inconstância
Das imagens opacas
De um fantasma.

Mas sentimos saudades
De um tempo passado
Que passou
Do amor passageiro
Que não passa
De uma sombra
Do passado
Que continua passando
Como filme antigo
Num cinema decadente
Habitado pelos ratos.

Somente os ratos existem
Neste momento
Que continuam a roer
As paredes grossas
De meu baú de passados.


Negócios e batismos


CONTO

            Chegaram àquela cidade, após inúmeras passagens pelo interior de São Paulo, primeiramente numa fazenda de café, que no primeiro ano entrou em colapso. Trocaram por uma outra fazenda, que estava em situação financeira melhor. Depois, resolveram abandonar as plantações de café e arrendaram terras para o plantio de algodão. A situação melhorou. Não se tratava mais de culturas desenvolvidas por um patrão, a quem deviam prestar serviços. Claro, desta vez o risco não podia ser repartido com outro. Era justamente o apogeu do algodão. Ganharam dinheiro cultivando o produto, que  alongou-se por anos.               Quando chegaram ao Brasil, os filhos ainda pequenos, um com doze, outro com dez anos. Tinham sido obrigados a abandonar a escola. O de dez anos chorou muito, não entendendo o que ocorria de fato. Eram as agruras da vida: imigrar.
            Os dois irmãos cresceram, o mais velho continuou a lida no campo; tentou a sorte na cultura do tomate. Um negócio arriscado. Tinham abandonado as terras de algodão, pois algo acontecia entre os japoneses locais de estranho. Falava-se a respeito dos “corações sujos”, tratamento indigno dados àqueles que  não louvavam os feitos das Forças Armadas do Grande Império Japonês. Um clima de animosidade formara-se entre os colonos. A desconfiança era patética. Dizia-se de que um grupo de nacionalistas intitulado “Tokkotai” perseguia os supostos traidores da pátria. Mas aquela família queria estar longe dos conflitos políticos. Por isso, deixaram o local, a fim de proteger a própria pele diante desta guerra injusta entre compatriotas. Deixaram definitivamente a região de Marília e foram para as cercanias de Campinas.
            O irmão mais novo mostrou-se ousado. Não era entre os japoneses que devia desenvolver seus empreendimentos. Foi para a cidade. Uma indústria textil dava suporte para o desenvolvimento do lugar. Principalmente os italianos e seus descendentes abasteciam-na com mão-de-obra assalariada. Para se manter resolveu cultivar hortaliças numa pequena área arrendada. A venda era rápida, numa feira-livre e, mais tarde, numa quitanda, de um espanhol conhecido por João. Era o João Espanhol, muitas vezes apenas Espanhol. Foi seu primeiro amigo, com idade próxima a sua.
            Era bastante atraente a vida na cidade. Conheceu um outro espanhol, o Benito. Resolveu alugar sua casa, cuja instalação à frente, montou um pequeno estabelecimento comercial: uma quitanda. Chamou-a de Quitanda “A Caçula”, pois a que pertencia ao seu amigo Espanhol era a irmã mais velha. Nada mais justo. Nem o Espanhol se mostrou ofendido pela concorrência do amigo. De fato, a do amigo era maior, com muito mais ofertas que a sua.
            A freguesia aumentava, na mesma proporção que o círculo de amizade se alargava, principalmente entre os vizinhos. Os meninos da casa do outro lado da rua passaram a freqüentar o estabelecimento. Eram o Valien e o Osvaldo. Como não tinha um nome em português, logo passaram a chamá-lo de José. Para encurtar a história e também o nome, Zé para os amigos. Até esqueceram que ele era japonês. Havia, de certo, um acento ao pronunciar as palavras em português. Mas Zé aprendia rápido. Havia nele uma habilidade comercial, talvez herdado dos avós, nativos que eram da região de Kansai. Fazer comércio, era também uma forma de criar vínculos com os outros habitantes. Havia de tudo. Além dos italianos, os espanhóis e os alemães, armênios e libaneses, inclusive um russo. Este russo tinha barbas brancas e longas, que lembrava Tolstoi.
            - Oi Zé, você é uma pessoa estimada nesta cidade, todos gostam de você e vai ter muito sucesso com a sua quitanda. Só falta uma coisa – disse de maneira  desembaraçada dona Olga. Não tinha papas na língua, ia logo no assunto.
            Só ficou esperando ela terminar aquela ladainha. Estava curioso. O que poderia ser? Tentou sorrir, um tanto incomodado. Mostrou em seu rosto uma expressão de que ela podia falar, que ele era todo ouvidos.
            - O problema, não estou dizendo que seja sua culpa. É que você precisa ser batizado. Todos nós somos cristãos para sermos salvos. Se continuar sem batismo, o que será de sua vida.
            Do que realmente se tratava aquilo, não sabia dizer. A vizinha tinha se intrometido num problema particular, que dizia respeito unicamente à sua crença. Relutou:
            - Com estima que tenho pela senhora, agradeço pelo observação. Nunca pensei sobre isso. Não pensei que fosse um problema.
            Nunca mais tocou naquele assunto. Toda vez que Olga dirigia-se ao estabelecimento, seja para comprar uma dúzia de ovos galados, seja apenas para levar um maço de salsa dirigia um olhar de advertência ao Zé. Ele não ligava para isso.
            Alguns anos se passaram e arrumou uma noiva. Não podiam se casar na igreja, pois ele não era batizado. Mais uma vez aquela velha história. Quis comprar a casa alugada, que o proprietário se mostrou interessado em levar adiante o negócio. A negociação saiu, quando as partes resolveram ceder. O preço caiu e o Zé aceitou Benito como padrinho. Tornou-se  padrinho de batismo e de casamento. O presente foi a venda da antiga casa.
            Para que Olga tivesse a compensação, que desejava batizar o Zé, aceitou batizar o seu primeiro filho, que chamaram de Chico. O Benito passou a visitar o afilhado, sempre bastante solícito. Havia uma amizade duradoura. Quanto a Olga, como era vizinha, intrometia-se inclusive na educação de Chico. Uma vez Chico foi acometido por uma ferida, quem o levou ao médico foi justamente a Olga, juntamente com outra madrinha, a Joana, esta de crisma.